terça-feira, 28 de abril de 2009

Legitimidade dos Particulares?

Ao leitor que ponha os olhos nestas linhas que lhe são dirigidas, o esforço pedido é que se coloque na pele de alguém que se sensibiliza pelas questões ambientais e que pretenda ver uma indemnização pelas agressões à “mãe” natureza, não porque queira lucrar, algo que preferencialmente se subvaloriza em detrimento de uma reconstituição natural, nem porque acredite num “direito penal ambiental”, mas porque, acima de tudo, pretende ver o fim de um sem números de ameaças contra o ambiente.
Pode o leitor efectivar essa vontade? Terá o leitor alguma especie de legitimidade?
Este texto é uma pequena reflexão sobre o dano ecológico entre particulares. Não se pretende aferir do papel do Estado, nem da sua intervenção. O objectivo é entender até que ponto se pode imputar, nos termos da responsabilidade civil do artº483 do código civil, um dano ambiental numa esfera capaz de responder. Esta tarefa é tudo menos simples. Preencher os requisitos e depois efectivar pretensões em juízo pode parecer uma tarefa verdadeiramente Herculea.
Num juízo apriorístico, há que fazer algumas precisões. Para concretizar algum pensamento mais abstracto, há que ter por base alguns exemplos. A tomar em consideração é o caso da Baía de Minamata, em que determinada fábrica deitava, para a citada Baía, resíduos que, num momento posterior, vieram a ser responsáveis pela morte da fauna marinha e pelo aparecimento de doenças nos populares que viviam nas redondezas. Isto passou-se em 1907. Neste exemplo, nesta questão específica, poderiam ver-se verificados os pressupostos do artº483º C.C? Há acto? Ilicitude? Culpa? Dano? Nexo de Causalidade? Admita-se que é possível preencher tudo. Haverá, depois, hipótese de fazer valer a pretensão em tribunal? Responder à pergunta é atentar no plano substantivo e no adjectivo. Pelo direito civil, havia, ainda, uma tutela a efectivar pelas relações de vizinhança ou, por outro lado, tutelando direitos de personalidade, isto numa construção bem dificil de manter no mundo do exequível.
A primeira condição para efectivar a imputação do dano é encontrar um acto. Falamos em acto, admitindo a preferência pela terminologia do Prof.Pessoa Jorge. Há, ou não, um acto da fábrica? Há uma acção dominada pela vontade. Naturalmente, estamos a falar de uma pessoa colectiva e falar de vontade em algo que não seja verdadeiramente humano pode tornar-se muito complicado. Há resíduos, eles não ficam na fábrica, são despejados e a Baía é o seu destino. Aqui os problemas não se levantam como noutras sedes.
No tocante à ilicitude, ela traduz-se num juízo jurídico de censura. Tradicionalmente, verifica-se quando existe a agressão a algum direito subjectivo ou se relata a violação de uma norma de protecção. Pensemos no caso concreto. O valor em jogo é o ambiente. Na senda do Prof. Vasco Pereira da Silva, apoiamos a tese de que nada obsta a ver nesse valor, não definido, mas consagrado no artº 66 CRP, um verdadeiro direito subjectivo e, no caso em apreço, um direito subjectivo que foi violado, na medida em que se consubstancia em agressão a conduta da fábrica que representa um obstáculo à fruição de que pode ser alvo.
Quanto à culpa, em Direito Civil, pode falar-se em dolo ou negligência. A problemática, aqui, é de ónus da prova. Como provar o dolo? É extremamente dificil encontrar uma vontade de agir contra o ambiente. Já a negligência pode ser mais fácil, mas não raras vezes, as actividades industriais estão sujeitas a regulamentação sectorial que, respeitada, não pode indicar negligência. Isto deixa mais uma questão no ar: como resolver e repartir o ónus da prova?
O quarto requisito é o dano. Está a falar de um dano qualquer? Muito pelo contrário. Aqui releva, fundamentalmente, um dano ecológico. Segue-se a terminologia do Dr. Cunhal Sendim, que define o dano ecológico como “perturbação do património natural que afecte a capacidade funcional ecológica e a capacidade de aproveitamento humano de tais bens (ambientais) tutelados pelo sistema jurídico-ambiental”. Tomando em linha de conta o exemplo exposto, há uma Baía que já não pode ser aproveitada, fruída, nada. Os resíduos tornaram-na impossível, mataram os peixes que ali nadavam. Ecossistemas não existem. Não há aproveitamento humano de um local que causa doenças.
Por fim, exige-se um nexo de causalidade entre o acto e o dano. A par da culpa, este é um requisito dificil de preencher. Há multiplas teorias a versar sobre o nexo de causalidade. Há as mais extremistas, como a conditio sine qua non, em que qualquer condição é apta a provocar o dano, aquelas que não têm correspondência na lei, mais especificamente no código civil, como seja a do escopo da norma, que apela à função da disposição legal, fundamentalmente para verificar se é violado algum âmbito de aplicação ou função, e duas outras, a saber, conexão do risco e causalidade adequada. Apelando ao positivismo, há uma clara preferência pela causalidade adequada, vide art 563º CC. Adoptar esta teoria é pensar num juízo prévio de prognose póstuma, em que alguém colocado na posição do agente, saberia que aquela conduta teria aquele resultado. Isto parece impossível de provar. Aqui, como na questão da culpa, a prova aparece como obstáculo. Como o fazer?
Dizer isto é, em suma, dizer que há três problemas a resolver. O primeiro é provar a culpa. Sendo que a negligência parece bem mais ao alcance que o dolo, ainda assim, não parecem existir facilidades de espécie alguma. O segundo é a determinação dos responsáveis pelo dano, o mesmo é dizer que provar o nexo de causalidade entre acto e dano também é uma questão de prova. Como assegurar que foi a fábrica? Porque não atribuir todos os problemas às intempéries ambientais tão comuns? Eventualmente, a uma chuva ácida? O terceiro problema tem que ver com a verificação de tendências. Habitualmente, o dano ecológico só é ressarcido em grupo, isto é, se o leitor, de facto, se colocasse na pele do inconformado, e mesmo lesado, o melhor que levaria seria o prémio participação.
A solução proposta para resolver o problema da prova tem que passar pelo recurso aos princípios de Direito do Ambiente. Parece já estar mais que claro que se impõe uma distribuição do ónus da prova pelos multiplos intervenientes no litígio. Aqui tem o seu maior relevo o princípio da precaução, alias, é aqui que ele começa por ganhar forças e a autonomizar-se do princípio da prevenção. Podemos vê-lo em convenções internacionais, como a declaração do Rio, a nível interno encontramo-lo na Lei da Água. Diz a citada lei o seguinte: Princípio da precaução, nos termos do qual as medidas destinadas a evitar o impacte negativo de uma acção sobre o ambiente devem ser adoptadas, mesmo na ausência de certeza científica da existência de uma relação causa-efeito entre eles. Nesta formulação, é inequívoco que caberá à fábrica o papel de demonstrar que não contribuiu para o agravamento das condições ecológicas. Isto funciona a nível de culpa e a nivel de nexo de causalidade. Se nos ficassemos pela simples precaução, a verdade é que os particulares continuariam injustamente onerados. Se, de facto, não foi por acção da fábrica que o ambiente foi atacado, perceba-se, a prova não é dificil de apresentar.
Quanto ao problema da hipótese de não serem ressarcidos danos ecológicos individuais, isto é, reclamados apenas por um particular, a verdade é que o direito positivo não obsta às pretensões individuais. Se um particular deixa de poder usufruir de um bem ambiental, porque razão não lhe há de ser concedida indemnização? Porque é que não há de haver, se tal for possível, restauração natural?
Até agora, observou-se a legitimidade do particular pelo lado substantivo. Impõe-se um curto périplo pelo lado processual da questão. A disposição legal que coloca mais problemas é o artº 26º CPC. Há “interesse directo” nesta questão ambiental? O que é isso? Alguma doutrina vem dizendo que o autor é parte legítima quando a procedência da acção lhe possa conferir, só para si e não para outrem, uma vantagem ou utilidade. A verdade é que, neste caso, as vantagens seriam para todos. Significa isso que não tem legitimidade? Não é possível entender o preceito desta maneira. O lesado tem de ter alguma tutela, é a lei que o exige, a constituição o prevê.
Concluindo, o instituto da responabilidade civil está vivo e disponível para contendas deste género. É que deve começar pelos particulares a luta pelo meio ambiente. Efectivando-a nos tribunais, claramente podemos assistir a um casamento perfeito do direito privado, em que vamos beber dos preceitos que permitem a imputação e fazem reverter o brocardo casum sentit dominus, e dos princípios de direito público, como é o da precaução, arma importante.