domingo, 12 de abril de 2009

Detenção de canídeos: um acto de gestão pública

O Decreto-lei 314/2003 de 17 de Dezembro aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e contém as regras aplicáveis à detenção, comércio, exposições e entrada em território nacional de animais susceptíveis à raiva., nomeadamente canídeos e felideos.
Estabelece o referido diploma legal no seu artigo 3º nº 6 que “o presidente da Câmara Municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial” quando as já mencionadas regras não sejam respeitadas por aqueles que possuem os animais, nomeadamente quando criam obstáculos à sua remoção. O mandado judicial a que o preceito se refere tem como objectivo possibilitar o acesso aos locais onde os animais (cuja situação viola o âmbito deste Decreto-Lei) se encontram.

No Acórdão agora em apreço o Presidente da Câmara requereu ao tribunal a emissão de um mandado que permita à Câmara remover animais em número superior ao legal, de acordo com o já mencionado Decreto-lei.
O Tribunal Cível de Lisboa decidiu contra o requerente considerando o art. 3º nº 6 ferido de inconstitucionalidade orgânica, e também considerando-se incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido. Após recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional concluiu igualmente pela inconstitucionalidade orgânica da norma acima mencionada.

Cumpre analisar esta questão compreendendo o que foi solicitado e as decisões dos tribunais.
Tal como já foi referido o art.3º nº6 do Decreto-Lei 314/2003 de 17/12 atribui ao Presidente da Câmara a possibilidade de solicitar a emissão de mandado judicial para remoção de animais cuja situação viole o disposto no diploma. A primeira questão que surge é a de saber se a decisão da Câmara de remover os animais corresponde ou não a um acto administrativo.

O diploma legal em apreço visa assegurar as boas condições de higiene, segurança e tranquilidade que a instalação de animais em locais ou habitações de forma precária pode colocar em risco.
Ora os valores citados, tais como a saúde, o sossego e a tranquilidade correspondem a direitos sociais que desenvolvem os nossos direitos fundamentais, assim sendo é lógico que a sua preservação se insira no Direito Público, trata-se de uma questão que pode afectar a ordenação geral da vida colectiva, estão em causa, sem dúvida, interesses públicos.
Assim a remoção de animais nas condições já referidas pertence ás autarquias locais e constitui um acto administrativo, ou seja acto unilateral que visa produzir efeitos numa situação individual e concreta.

O diploma que integra o art.3º nº6 agora em análise foi elaborado no exercício do poder legislativo que é cometido ao Governo de acordo com o art. 198º nº1 da C.R.P. O art.3º/6 altera a definição da competência dos tribunais judiciais, pois atribui a estes últimos competência para praticar um acto jurisdicional no que concerne à remoção de animais (acto camarário, logo administrativo).
Acontece que esta matéria é, segundo o art. 165º nº1 p) da C.R.P, de reserva relativa da A. R, e o diploma foi emitido sem autorização parlamentar. A matéria que o Decreto-lei 317/85 aborda é, pelo exposto, da competência dos tribunais administrativos, não dos judiciais. A norma enferma de inconstitucionalidade orgânica.

Apesar de acompanhar a posição do Tribunal Constitucional uma questão que me chamou a atenção foi a alegada pelo Ministério Público no que diz respeito à execução do acto administrativo nos casos em que esteja em causa a entrada coerciva no domicílio de quem tem a posse dos animais e dificulte a remoção dos mesmos.
Neste caso, para possibilitar tal entrada, a intervenção jurisdicional faria sentido como acessória da relação administrativa em causa.
Penso que esta questão deveria ter sido abordada na decisão do Tribunal, que se limitou a confirmar a decisão do Tribunal Cível de Lisboa, independentemente de estarem em causa a necessidade de exercícios de meios de coerção ou não.

Apesar desta questão que, no mínimo, gostaria de ter visto abordada de forma mais detalhada concordo com a decisão dos Tribunais e concluo que de facto aos tribunais judiciais competem apenas as matérias que não sejam atribuídas por lei a outra ordem jurisdicional, segundo o art. 66º do C.P.C e art.18º nº1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais. Na situação em análise estava em causa um acto administrativo, atribuído à Câmara Municipal, logo a apreciação do pedido formulado cabe aos Tribunais Administrativos (art. 4º nº1 b) do E.T.A.F).