domingo, 26 de abril de 2009

(2ª Tarefa) Comentário à frase de Martha C. Nussbaum

Na afirmação da Professora Martha Nussbaum, não existem argumentos capazes de demonstrar um fundamento legítimo para que os mecanismos legais não ultrapassem as barreiras da espécie. Para a autora, os animais são susceptíveis de serem titulares de posições jurídicas activas, tendo direitos próprios, podendo igualmente intervir em juízo.

A expressão “direitos dos animais”, tal como é comummente empregue, foi objecto de inúmeras concepções doutrinárias com resultados muito díspares, ao longo dos tempos.
Descartes, influenciado pela ciência da mecânica e pela sua profunda crença religiosa, apresenta o conceito de que, para além dos animais não terem almas mortais, também não teriam consciência. Afirma que não passam de máquinas e que não conseguem experimentar o prazer ou a dor. Foi aqui que teve início a prática da experimentação com animais vivos e duma série de experiências em prol do conhecimento.

No pólo oposto surgiu Voltaire que demonstrou a preocupação pelo bem-estar dos animais e denunciou o sofrimento infligido pelo homem, em particular, às espécies domésticas (“algumas criaturas bárbaras agarram nesse cão, que excede o homem em sentimentos de amizade; pregam-no numa mesa, dissecam-no vivo ainda, para te mostrarem as veias mesentéricas. Encontras nele todos os órgãos das sensações que também existem em ti. Atreve-te agora a argumentar, se és capaz, que a Natureza colocou todos esses instrumentos de sensação no Animal, para que ele não possa sentir!”)

A defesa pelos direitos dos animais adquiriu maior expressão sistemática com o aparecimento do utilitarismo de Jeremy Bentham, como teoria moral assente no princípio de potenciação do bem-estar e minimização do sofrimento em todas as entidades capazes de sentir prazer e dor, independentemente do grau de racionalidade ou de capacidade linguística que possam exibir (“A questão não é: Podem eles raciocinar? Nem: Podem eles falar? Mas: Podem eles sofrer?”).

Estavam lançadas as bases para aquilo que, dois séculos mais tarde, Peter Singer, veio a designar como preconceito especista, isto é, a discriminação moral fundada na pertença à espécie homo sapiens, defendendo a recusa da mesma. Citando o autor “se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificação moral para recusar ter o sofrimento em consideração (…) se um ser não tem capacidade de sofrer ou de sentir alegria ou felicidade, não há nada para ser tido em conta. Logo, o limite da senciência (…) é a única fronteira defensável para a preocupação pelos interesses dos outros.” (P. Singer, 1990, pp. 8-9).

Ora, ter interesse no seu bem-estar, isto é, não apenas sentir prazer e dor, mas desejar activamente o prazer e evitar a dor, constitui o fundamento para a formulação do princípio de igual consideração de interesses: para interesses iguais, igual consideração moral, independentemente de raça, sexo ou espécie. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que o sofrimento seja levado em linha de conta em termos igualitários relativamente a um sofrimento semelhante de qualquer outro ser, tanto quanto é possível fazer comparações aproximadas. Se um determinado ser não é capaz de sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada a tomar em consideração. É por isso que o limite da senciência (capacidade de sofrer ou de sentir prazer ou felicidade) é a única fronteira defensável da preocupação pelo interesse alheio. Assim sendo, para aquelas espécies que possuem consciência de si no tempo e se mostram capazes de projectar a sua existência no futuro, existe o interesse em não serem mortas, como o caso dos primatas a mamíferos onde existe uma maior identidade com o homem. Já aqueles animais que possuem somente uma consciência instantânea, não tendo capacidade de projectar a sua existência no futuro, como é, para Singer, o caso dos peixes, teriam apenas interesse em não sofrer, pondo o filósofo a hipótese de não ser eticamente ilegítimo mata-los, desde que tal não acarrete sofrimento. Numa perspectiva utilitarista clássica, como é a de Singer, a morte de qualquer animal, por exemplo, para consumo humano, não constituiria um mal, desde que indolor e que o seu bem-estar fosse garantido durante a vida.

Na esteira deste filósofo, e em seguimento desta consideração ética para com todos os seres sencientes, surgem outros autores, nomeadamente Martha Nussbaum, que defendem que aos animais devem, não só garantir-lhes o seu bem-estar, como atribuir-lhes direitos legais, ou seja, tornarem-se susceptíveis de serem titulares de posições jurídicas activas e consequentemente terem legitimidade para intervir em juízo (de forma análoga á representação dos incapazes), conduzindo a uma técnica jurídica semelhante á da personalização das Pessoas Colectivas, no sentido de reconhecer a dignidade ao animal.

Não me parece que esta seja a melhor opção para se garantir uma existência digna dos animais, e para o provar, socorro-me dos argumentos já defendidos por, Fernando Araújo, António Costa (Dos Animais - O Direito e os Direitos) e Vasco Pereira da Silva. Para estes autores a personalização da condição animal pode conduzir a um possível aumento do abandono de animais domésticos pela falta de responsabilidade pela coisa e a um aproveitamento dessa nova condição pelos detentores ou exploradores de animais, numa tentativa de exoneração da responsabilidade por danos causados por esses mesmos animais. No caso de conflito entre seres humanos e animais ferozes questiona-se como ficaria a questão da ocupação ou destruição desses animais se confrontados com a necessidade de prevalência de interesses humanos vitais. Contrariam igualmente os termos radicais em que a Declaração Universal dos Direitos do Animal colocou no seu preambulo que “todo o animal possui direitos” consagrando em termos absolutos os direitos à igualdade, á existência, ao respeito, e defendendo que os direitos dos animais devem ser tutelados pela lei como os direitos do homem. Entendem, e com razão, que, se os animais não podem ser submetidos a deveres, á semelhança do homem, não é concebível atribuir-lhes direitos, e que se os animais forem sujeitos de direito, não podem ao mesmo tempo ser objecto de direitos.

Na nossa ordem jurídica os animais assumem o estatuto de coisas. O artigo 202º do CC define coisa como tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas. Sendo certo que alguns animais constituem “res nullius” e que outros não podem ser apropriados pelos particulares, todos devem ser incluídos no conceito de coisa.
São também considerados coisas móveis porque não estão incluídos na enumeração das coisas imóveis constante dos arts. 204º e 205º CC.
Os animais domésticos e os domesticados que se encontram apropriados são objecto de direitos privados, podendo sobre eles incidir os direitos de posse, propriedade e usufruto e podem ser adquiridos por qualquer dos modos de aquisição dos bens móveis. Em relação aos animais selvagens, que em princípio bens de todos e não do Estado, alguns são susceptíveis de ocupação atribuindo-se ao caçador a propriedade das peças de caça legalmente capturadas (1319º CC, 5/1 da Lei nº 30/86 e art. 7º DL 136/96).
Do que acabo de expor pode concluir-se que no regime vigente os animais são equiparados a coisas e que muito dificilmente se conseguiria obter uma personalização dos mesmos atribuindo-lhes direitos subjectivos, solução defendida por Martha Nussbaum. Contudo, a opção da nossa ordem jurídica não parece a melhor. De referir o exemplo dos regimes vigentes em outros países, como nos códigos civis da Áustria, Alemanha e Suíça, que evoluíram no sentido de reconhecer aos animais uma categoria autónoma, a par da categoria das coisas.

Ora, quaisquer que sejam as perspectivas defendidas, a reflexão filosófica sobre a consideração ética devida aos animais será determinante para questionar a visão antropocêntrica do mundo que domina a civilização ocidental, ao mesmo tempo que constituirá um contributo significativo para a alteração de hábitos e costumes humanos que põem em causa a integridade de outras espécies. Martha Nussbaum, no seu comentário, descreve algumas das situações em que se testemunha uma clara violação daquilo que a autora defende como “dignidade animal”, nomeadamente as condições degradantes a que sujeitam os animais de circo, “squeezed into cramped and filthy cages, starved, terrorized, and beaten, given only the minimal care that would make them presentable in the ring the following day.”

Entendo que não deve haver uma extensão dos direitos dos homens aos animais, através da atribuição de direitos subjectivos aos mesmos, conduzindo a uma personalização jurídica, mas defendo que a melhor forma de garantir a dignidade animal é aperfeiçoar a tutela oferecida, que passa pela determinação de deveres específicos das pessoas no sentido de garantir a protecção dos animais e a sua dignidade. O Homem tem que dar o passo no sentido de deixar de subjugar outras espécies com o argumento de que são inferiores.

“A discriminação com base na espécie assenta num preconceito imoral e indefensável.” - Peter Singer, Libertação Animal