A licitude ou ilicitude da actividade de tiro aos pombos no Ordenamento Jurídico Português depende da indagação acerca do alcance da protecção que, neste ordenamento, os animais recebem. Como enquadramento geral cumpre referir que, indubitavelmente, os animais são considerados, no nosso Direito, como coisas móveis, apropriáveis. Tal resulta dos artºs. 202º/1, 205º/1 e 212º/3 do Código Civil. São objecto de direitos, não sujeitos de direitos. E, de facto, qualquer que seja a perspectiva ético-filosófica que adoptemos, não parece de conceber o alargamento do conceito de direito subjectivo aos animais - que carecem de racionalidade, autonomia e capacidade para exercer direitos. Todavia, também parece descabido assimilar um animal a qualquer outra coisa inanimada, pelo que se deve reconhecer-lhe um lugar próprio dentro do conceito de coisas, enquanto "res sui generis". Face à tutela objectiva específica e ao regime jurídico de protecção especial concedidos aos animais, esta classificação assenta-lhes, como refere Dias Pereira, como uma luva.
Esta tutela é levada a cabo, em primeiro plano, pela Lei 92/95, de 12/9, que define os princípios gerais respeitantes à protecção da vida e integridade física dos animais perante o Homem. Nasce de considerações que encontram já uma expansão bem mais considerável em grande parte dos restantes ordenamentos jurídicos europeus: os animais são seres vivos, com capacidade de sentir e de sofrer, partilham connosco a natureza e a prossecução dos nossos fins não seria, sem eles, viável. Espelha a consciencialização por parte do homem de que tem que respeitar, pelas razões explanadas, o animal. Assim se compreende o artº. 1º/1 da referida Lei, quando estatui que "são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal." O princípio geral é este, ao qual ficam sujeitas todas as situações não abrangidas por uma justificação excepcional. Está a actividade do tiro aos pombos abrangida pela proibição? A questão está longe de ser pacífica, dependendo, essencialmente, da interpretação que se faça do conceito indeterminado "sem necessidade". Normalmente procede-se a uma análise da subsunção ou não da ofensa ao animal na categoria de "graves lesões" ou "sofrimento cruel e prolongado". Não me parece, neste caso, contudo, decisiva esta consideração, já que estes conceitos integradores da previsão da norma aparecem em alternativa com o conceito de "morte" - e a morte do animal é o resultado que é normal esperar do normal decurso da actividade de tiro aos pombos.
O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, em jurisprudência constante (veja-se, por exemplo, os Acórdãos de 11/03/04 e de 03/10/02), que esta actividade é permitida. Faz uma interpretação bastante ampla do conceito de necessidade, no qual entende estar reflectida a ideia de que cabe proceder a uma ponderação dos valores merecedores de protecção no caso concreto. A "necessidade" apelaria para uma justificação razoável ou uma tradição cultural bastante. O fim da norma seria proteger os animais contra violências desumanas gratuitas, arbitrárias ou sem fundamento, pelo que seria excessivamente redutor limitar o preenchimento da noção de "necessidade" aos casos de alimentação, saúde pública ou investigação. O tribunal desvaloriza o facto de com a actividade de tiro aos pombos se visar o melhoramento da perícia dos atiradores, a competição e o lazer, encarando-a , no que interessa, enquanto actividade "antiga em mais de um século e meio", "integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente", fazendo, por conseguinte, parte do "nosso património cultural, a exemplo do que ocorre com as touradas e arte equestre". É essencialmente com base neste carácter socialmente útil, resultante da integração do tiro aos pombos no património cultural português, que o Tribunal justifica a "necessidade" da actividade, para efeitos de não ficar proscrita pelo âmbito de aplicação do art.º 1º/1. Convoca ainda como suportes da sua argumentação o argumento histórico - que consiste no facto de não ter passado, na feitura da lei, uma proposta que visava proibir expressamente o tiro aos pombos - e o argumento sistemático - resultante do paralelismo que esta actividade apresenta com a tourada e a arte equestre, actividades permitidas. Apresenta ainda o argumento de que "não se compreenderia que o Governo mantivesse à recorrida Federação de Tiro Com Armas de Caça o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, exercendo por via dele, no âmbito da organização e disciplina da actividade desportiva de tiro ao voo de pombos, além do mais, poderes de ordem administrativa, não obstante a lei proibir essa prática".
Decisões jurisprudenciais existem, em todo o caso, no sentido inverso. Exemplo é o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/10/03, comentado favoravelmente por André Dias Pereira. Sublinha-se a existência de uma proibição com carácter geral das actividades que provoquem a morte, sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões nos animais, e frisa-se a natureza de excepções de actividades como a caça, as touradas, a pesca, a arte equestre e as investigações científicas que têm animais como objecto. Estas excepções vêm previstas expressamente como tal no art.º 1º/3 da Lei 92/95. Poder-se-ia, desde logo, questionar sobre se serão verdadeiras excepções ao art.º 1º/1 ou se são apenas concretizações do conceito de necessidade. Se se adoptar um conceito rigoroso de necessidade, serão verdadeiras excepções. Além disso, a repetição da exigência de "comprovada necessidade" no art.º 1º/3 al. e) parece apontar para este entendimento: o nº3 é independente do nº1. Especialmente no que diz respeito à caça, actividade cujo regime de excepção mais facilmente se poderia considerar extensível ao tiro aos pombos, o refere o Tribunal que esta actividade é dotada de uma normatividade específica, estando regulada em diploma próprio, sendo apenas permitida nos termos e dentro dos condicionamentos e restrições impostos àquela actividade pela Lei 172/99. A actividade de tiro aos pombos enquanto actividade lúdica, levada a cabo fora do contexto venatório, não apresenta uma normatividade equivalente que justifique a analogia - o que, aliás, nem parece que fosse possível, salvo se se pretendesse fazer tábua rasa da proibição ínsita no art.º 11º C.C.. Fecha o Tribunal, deste modo, as portas a uma permissão do tiro aos pombos por via da analogia. Mas resta, de qualquer forma, a possibilidade de esta actividade ser "necessária", como entende o S.T.J.. É aqui que o Tribunal demonstra interpretar restritivamente o conceito de "necessidade", conotando-o com a ideia de indispensabilidade - só é necessária a lesão da vida/integridade dos animais se a actividade de tiro não poder ser cabalmente - sem perda de eficácia, deturpação do desporto ou dos seus propósitos - realizada com a substituição dos animais por hélices ou pratos. Não é assim suficiente, para preencher o conceito de "necessidade", a existência de uma tradição envolvendo a respectiva actividade. Como diz Dias Pereira, a lei só quis excepcionar algumas tradições culturais - e nem seria líquido que o tiro aos pombos revestisse a natureza de tradição, pelo menos forte o suficiente para ser digna de tutela. Quanto à presunção que o S.T.J. extrai acerca dos trabalhos preparatórios, no sentido de se presumir que o legislador quis permitir a actividade, o T.R.G. relativiza o elemento histórico da interpretação, ao mesmo tempo que afirma que a eliminação da proibição expressa pode perfeitamente ter visado obedecer ao mandamento de que as leis devem ser claras e não repetitivas. No que toca ao facto das Associações de Tiro serem, reconhecidamente, de utilidade pública desportiva, o Tribunal refere que este título não implica, evidentemente, que todas as modalidades de tiro estejam cobertas pela Lei. No caso de certa modalidade ser proibida, a Associação mais não terá que fazer que adaptar a sua situação à nova realidade legal, como qualquer outra pessoa. Por fim, o Tribunal conclui que a utilização de animais vivos não é inevitável, indispensável para se levar a cabo plenamente a actividade de tiro. Resultado idêntico - que, ainda que não seja igual, tenderá a ser, já que o estímulo económico induzido na produção dos mecanismos como os pratos ou as hélices pela procura crescente, que resultaria da proibição da utilização de animais vivos, conduzirá fácil e rapidamente a um aperfeiçoamento destes mecanismos ao ponto de serem tão ou mais adequados ao desporto do tiro - pode ser conseguido pela utilização, ao invés, de pratos ou de hélices, sem desvirtuamento da actividade ou dos seus objectivos - já que o voo efectuado por estes mecanismos é, ou pode ser, igualmente irregular e imprevisível, sendo apto a testar e melhorar a perícia dos atiradores.
Que dizer? Parece-me ser este segundo entendimento o que melhor se ajusta tanto à letra da lei como ao seu espírito. À letra, uma vez que necessidade apela indiscutivelmente para a indispensabilidade, e não meramente para uma justificação razoável, indagável mediante uma ponderação casuística de valores. Ao espírito, na medida em que é, hoje em dia, propósito cada vez mais assumido pelas legislações dos diversos países o de proteger os animais contra a agressividade e o egoísmo do homem, contribuindo, desse modo, para uma partilha harmoniosa do bem comum que é a natureza. A actividade tiro aos pombos é, na esteira deste propósito, proibida em numerosos países da União Europeia, com a substituição por aparelhos técnicos.