O dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora define animal como s.m. 1 ser vivo, tipicamente dotado de mobilidade própria e sensibilidade, que pode nutrir-se de alimentos sólidos e possuir membrana celular de natureza azotada; 2 ser vivo irracional. É precisamente neste último ponto a grande diferença para o Direito entre o animal e o ser humano – a razão.
A razão é a fronteira que separa Homens de Animais e é com base nela que os primeiros são susceptíveis de direitos e deveres e os segundos não. Este é o traço distintivo que nos permite criar raciocínios lógicos, contrair obrigações, agir para além do instinto ou ser responsabilizados pelos nossos actos. No entanto, não obstante a importância fulcral da racionalidade, nós não somos assim tão diferentes do nosso gato ou do nosso cão. Humanos e animais sentem prazer, satisfação, alegria e tristeza, nervosismo ou angústia, estabelecem relações com aqueles que lhes são próximos, sentem fome, sede e possuem instinto sexual. Será que pelo facto de o ser humano estar dotado de inteligência terá o direito a subjugar, inferiorizar e explorar o animal?
Já desde os primórdios que se discute entre os grandes filósofos a problemática dos direitos dos animais e a questão do seu bem-estar. Se Sócrates, Platão ou Aristóteles não tinham grande apreço pelos direitos dos animais alegando a evidente supremacia do Homem sobre estes, já, posteriormente, Pitágoras, Plutarco ou Porfírio muito se debateram contra os abusos que sempre foram cometidos contra estes. O respeito pelos animais retrocede aquando do pensamento cristão religioso da Idade Média no Ocidente, salvo as honrosas excepções de São Francisco de Assis e Montaigne. No Oriente e Extremo-Oriente os animais tinham um estatuto mais favorável graças ao Islão tradicional, ao budismo e ao taoísmo. No século XVII Descartes e Voltaire mediram forças a este respeito defendendo o primeiro que os animais não tinham alma pelo que os maus-tratos a estes eram perfeitamente legítimos ao que o segundo veio responder com acusações de “ingenuidade” e “pobreza de espírito”.
O expoente máximo da defesa dos animais deu-se com Jeremy Bentham, um dos pais do utilitarismo moderno, que veio equiparar a dor animal à dor humana e defender que não se poderia discriminar os animais em função da razão (ou falta dela) pois dessa forma teria de ser fazer o mesmo com as crianças e incapazes. Bentham veio ainda dizer que «talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania».
Este é o contexto filosófico do que respeita aos direitos dos animais que originou o problema jurídico.
O primeiro passo de uma discussão desta natureza passará forçosamente pela questão: afinal os animais têm direitos próprios ou serão os homens que têm direito aos animais? Esta é uma questão que tem sido bastante debatida e cujas posições tomadas têm sido as mais diversas. Autores como VASCO PEREIRA DA SILVA defendem que animais (à semelhança das plantas ou natureza em geral) não possuem direitos subjectivos pelo que a utilização da expressão «direitos dos animais» acaba por ter uma conotação mais política que jurídica. ANTÓNIO PEREIRA DA COSTA acrescenta ainda que «as vantagens que os animais retiram das disposições legais que lhes são favoráveis constituem efeitos secundários e reflexos da tutela jurídica que lhes é indirectamente dispensada».
Esta posição parece ser coerente com o previsto nos arts. 66º, 67º e 158º do nosso Código Civil pois só aqueles que possuem personalidade jurídica são passíveis de tutela jurídica (directa) e os animais não possuem.
A posição contrária, isto é, que defende a atribuição de personalidade jurídica aos animais para atribuir-lhes verdadeiros direitos (assim como Savigny defendeu – e obteve – para as pessoas colectivas) tem vindo a ser defendida por associações de defesa nos animais e de protecção do ambiente e teve o seu momento de glória com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Animal (1978) que afirma no seu preâmbulo que «todo o animal possui direitos».
Esta é a posição de MARTHA NUSSBAUM ao afirmar que «there seems to be no good reason why existing mechanisms of basic justice, entitlement and law cannot be extended across the species barrier» e a que se juntam nomes como ALAN DERSHOWITZ e LAURENCE TRIBE da Harvard Law School.
Não sendo os animais «sujeitos de direito» à luz da lei, impõe-se saber o que são então. E, por não haver definição precisa onde os enquadrar, os animais têm de ser reconduzidos à qualificação jurídica como coisas (art. 202º CC), isto é, tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas, considerando-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual. E como não constam do art. 204º CC que enumera as coisas imóveis, temos de considerá-los coisas móveis (art. 205º CC). Soluções semelhantes adoptaram os Códigos Civis italiano, espanhol e francês.
Á luz do nosso ordenamento jurídico, como coisas que são, os animais encontram-se sujeitos ao regime das coisas no que se refere à ocupação, propriedade ou transmissão.
Em meu entender, a solução preconizada por MARTHA NUSSBAUM, ALAN DERSHOWITZ, LAURENCE TRIBE ou outras ainda mais radicais como as defendidas por TOM REGAN ou PETER SINGER não são as ideais no que respeita à tutela dos direitos dos animais. Conferir personalidade jurídica aos animais iria conferir-lhes não só direitos mas também deveres a que, enquanto seres não dotados de razão e sentido de responsabilidade, lhes não seria permitido responder. Tal abriria portas a que ocorresse um aumento do abandono animal, a que houvesse punição de animais que agissem de forma violenta provocada pelos donos ao invés de serem estes a ser punidos, etc.
Acompanho plenamente MARTHA NUSSBAUM no que respeita ao problema, isto é, no que respeita à urgente necessidade de se procederem a alterações legislativas que confiram uma (muito) maior protecção aos animais, só não considero a via sugerida a mais adequada. A equiparação de animais ao Homem levaria a situações injustas. Justiça é tratar igual o que é igual e tratar diferente o que é diferente, na medida da diferença e seres humanos e animais não são iguais, sendo que tratá-los como tal traria grandes prejuízos e quase sempre para o lado do animal.
Acredito que uma dessas alterações legislativas que poderia marcar a diferença no que respeita aos constantes abusos que são cometidos contra os animais era a criação no Código Civil de uma secção autónoma dedicada aos animais, independente do regime das coisas – o que, diga-se de passagem, até é indigno, mesmo entendido apenas em sentido jurídico – com vista à criação de uma figura híbrida, distinta quer das pessoas quer das coisas.