Animais não humanos: objectos do Direito ou sujeitos de direitos?
Na afirmação de Martha Nussbaum de que não há nenhuma razão para que os mecanismos legais não ultrapassem as barreiras da espécie, subentende-se a ideia de que a espécie vulgarmente designada por animal, por oposição à espécie humana (embora com alguma incorrecção porque também os homens são animais), deveria ter ela própria meios de reacção contra as violações dos seus direitos.
Ora, esta afirmação prende-se com duas questões muito controversas a propósito da Tutela jurídica dos Animais: em primeiro lugar, se são seres vivos susceptíveis de serem titulares de posições jurídicas activas, isto é, de direitos, e em segundo lugar se, tendo a titularidade de direitos, são dotados de legitimidade para intervir em juízo. Desde logo surge estranha esta afirmação sobre a eventual legitimidade dos animais intervirem em juízo, mas esclareceremos o ponto infra.
Tradicionalmente, e sobretudo antes do século XIX, a questão dos direitos dos animais não se colocava. Contribuiu em parte para este entendimento a filosofia de Descartes, que defendeu no século XVII a ideia de que os animais não tinham alma, não tinham consciência da dor e do prazer e não tinham inteligência, pelo que os seus actos seriam instintivos, automáticos e mecânicos, por oposição ao homem, ser dotado de alma, capaz de sentir sofrimento e satisfação, e ser pensante.
Actualmente, o paradigma é outro e discute-se se os animais não humanos são titulares de direitos. Na doutrina de vários países, existem, hoje, defensores do Princípio da Igualdade de Interesses entre animais humanos e animais não humanos, como é o caso do filósofo brasileiro Singer. O critério utilizado por este filósofo para justificar a igualdade entre as duas espécies é a capacidade de sofrimento e de felicidade que ambas as espécies possuem e que hoje está provada pela ciência. O autor posiciona-se, de um ponto de vista filosófico, contra as designadas Teorias do Especismo, filosofia que faz prevalecer os interesses de uma espécie (neste caso, a humana) sobre os interesses das demais espécies. Para Singer são manifestações de Especismo a utilização de animais para testar produtos cosméticos e medicamentos; para fins lúdicos, como as touradas, os jardins zoológicos e os circos (referidos na citação de Martha Nussbaum); e para outras práticas que envolvam o sofrimento animal a favor do lazer humano (apud Pedro Pereira Teodoro, O contínuo entre espécies (Os “Direitos dos Animais”), Relatório de Mestrado de Ciência Política, Lisboa, 2007, F.D.L.). Desta concepção filosófica decorre que os animais, por identidade de interesses e de características com os humanos, teriam personalidade jurídica e seriam titulares de direitos, ou seja, titulares de posições jurídicas activas. Neste ponto, os autores divergem, havendo autores que entendem que só os mamíferos, onde essa identidade com o homem é mais evidente, deveriam ter direitos; outros radicalizam e entendem que todos os animais devem ter direitos; por outro lado, há autores que entendem que só poderiam ser atribuídos direitos básicos (vida, integridade física, respeito) e outros que vão mais longe e atribuem direitos de outra índole, como o direito à imagem. Enfim, há opiniões e teorias diversas, muitas com pouco rigor em termos de construção jurídica. Ora, a atribuição de personalidade jurídica aos animais passaria por uma técnica jurídica semelhante à da personalização das Pessoas Colectivas, seria uma ficção de personalidade jurídica. Esta personalização seria um acto simbólico que teria a finalidade de reconhecer dignidade ao animal. A personalização é o pressuposto da existência de direitos dos animais. Já a legitimidade para agir em tribunal é a consequência da titularidade desses direitos. E quanto à legitimidade, defende-se que os animais seriam representados em juízo por terceiros, de forma análoga à representação dos incapazes. (quanto à atribuição de personalidade e legitimidade jurídicas aos animais, vide Helena Neves, A Natureza jurídica dos animais, Relatório de Mestrado em Ciências Jurídico-ambientais, Lisboa, 2006, F.D.L.). Os argumentos apontados por estes autores passam pelas seguintes ideias:
- ideia de que os animais têm sentimentos (sentem medo, nervosismo, tristeza, dor, alegria), têm uma sensibilidade semelhante à humana, têm dignidade, e por isso devem ser sujeitos de Direito;
- o preâmbulo da Declaração Universal dos direitos dos animais, instrumento internacional não vinculativo, afirma que “todo o animal possui direitos”.
Mas também encontramos autores, com os quais concordo, contra a personalização da condição animal, como HELENA NEVES, ANTÓNIO COSTA, VASCO PEREIRA DA SILVA. E estes autores invocam argumentos contra a subjectivação da tutela animal:
- atribuir direitos aos animais levaria ao aumento do abandono de animais domésticos, devido à falta de responsabilização do dono pelo animal;
- a personificação pode ser uma tentativa de exoneração de responsabilidade dos detentores e exploradores de animais;
- não é possível atribuir legitimidade para intervir em juízo aos animais em moldes semelhantes aos incapazes menores, interditos e inabilitados, pois a legitimidade não se confunde com a capacidade jurídica. Os incapazes têm uma personalidade jurídica plena (pelo simples facto de serem pessoas) e uma capacidade limitada. O animal além de ter uma capacidade limitada, também não poderia ter uma personalidade plena, mas sim limitada, a menos que se chegasse ao ridículo de admitir que os animais teriam uma personalidade plena e seriam titulares de todos os direitos que os homens possuem, como o direito à vida privada, à confidencialidade das cartas missivas, ao nome;
- quem tem direitos tem deveres; se podemos perspectivar que os animais tenham direitos, porque a existência de direitos apenas supõem restrições aos actos dos homens no sentido de respeitarem esses direitos, já será difícil perspectivar que os animais tenham deveres porque os animais não têm capacidade de autodeterminação, ou seja, possibilidade de fazer escolhas. O ser humano tem liberdade de acção, pode escolher entre o bem e o mal, mas os animais não têm essa capacidade racional, sendo apenas guiados pelos seus instintos, pelo que nunca conseguirão ser sujeitos de deveres. Ora, se não podem ser titulares de posições jurídicas passivas, também não poderão ser titulares das correspectivas posições jurídicas activas;
- o fundamento do Direito é a natureza social do homem e não o seu aspecto animal, pelo que não se justifica atribuir direitos a animais que não são tidos como seres sociais.
Concordo com a perspectiva de HELENA NEVES (ob. cit.), segundo a qual é mais razoável melhorar a tutela dos animais sem alterar a sua natureza jurídica. Segundo a autora, a tutela dos animais passa pelo conjunto de deveres que recaem sobre as pessoas relativos à protecção dos animais contra a morte e lesões injustificadas. De facto, dotar os animais não humanos de personalidade seria um biocentrismo exagerado, sendo preferível desenvolver uma lógica de protecção dos animais que não passe pela personalização dos mesmos. Assim, entender, como entendo, que os animais não são eles próprios titulares de direitos subjectivos é tomar partido pela filosofia do Antropocentrismo ecológico, como defende VASCO PEREIRA DA SILVA ( Verde, Cor de Direito, Almedina, Coimbra, 2005) e afastar as filosofias que defendem a existência de um Princípio de igualdade entre animais humanos e não humanos e a existência de direitos e de legitimidade processual dos animais, filosofias essas que se designam por Ecofundamentalistas. O problema da subjectivização da tutela ambiental começa a ganhar contornos mais amplos, e dos direitos aos animais passamos para os direitos do ambiente e da natureza, numa perspectiva ecocêntrica radical.
Na nossa ordem jurídica os animais assumem o estatuto de coisas. O CC define coisa como tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas (202º CC). Como os animais podem ser objecto de relações jurídicas, são classificados como coisas. E os animais são coisas móveis porque não estão incluídos na enumeração das coisas imóveis constante dos arts. 204º e 205º CC. Os animais domésticos que se encontram apropriados são objecto de direitos privados, podendo incidir sobre eles o direito de propriedade e a posse. Já os animais abandonados ou que nunca tiveram dono são considerados res nullius e podem ser adquiridos por ocupação (1318º CC). Em relação aos animais selvagens, que em princípio bens de todos e não do Estado, alguns são susceptíveis de ocupação por meio de caça (1319º CC, 5/1 Lei nº 30/86 e 7º DL 136/96). Por outro lado, a captura e comercialização de alguns animais estão legalmente vedadas, por conseguinte também a sua posse e propriedade estão vedadas.
Quem tiver assumido o encargo de vigilância de animal responde pelos danos que estes causarem, salvo se provar que não teve culpa ou a Relevância negativa da causa virtual (art. 493/1 CC). Quem em seu próprio interesse utilizar animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização (art. 502º CC). Exemplo deste regime é o Ac. da Relação do Porto de 3/10/91 in www.dgsi.pt, onde se estipulou a obrigação de indemnizar por danos causados pró uma colmeia de abelhas. (vide António Pereira da Costa, Dos Animais (O Direito e os Direitos), Coimbra Editora, Coimbra, 1998). Eis alguns traços essenciais do regime que tutela os animais, não querendo fazer uma análise exaustiva da matéria que consta também de vários diplomas avulsos, como a lei 92/95, a Convenção Europeia para a protecção dos animais de Companhia ou a Declaração Universal dos direitos dos animais de 1978.
Do que foi exposto pode concluir-se que no regime vigente os animais são equiparados a coisas e que não há espaço para afirmar a existência de direitos subjectivos dos animais. No entanto, entendo que o regime vigente devia seguir a evolução legislativa que se vai sentindo noutros países, como nos códigos civis da Áustria, Alemanha e Suiça, no sentido de descaracterizar os animais como coisas e reconhecer-lhes uma categoria autónoma, um tertium genus, ao lado da categoria das coisas. Seria uma mudança simbólica, que teria a dignidade de ver o animal como criatura, mais do que simples coisa, mas muito aquém da sua personalização.
Um outro aspecto relevante da afirmação de Martha Nussbaum reporta-se às condições degradantes em que vivem muitos animais do circo e que levam muitos autores a justificar a subjectivização da tutela animal. De facto, os animais muitas vezes são usados com finalidades de entretenimento para os humanos. Assim se passa com a tourada, com as lutas de cães ou de galos, com os circos. Existe, de facto, legislação específica que tutela, embora na minha opinião ainda de forma incompleta, os animais explorados com fins lúdicos: refiro-me à lei 19/2002 de 31 de Julho (que altera a lei 12-B/2000 de 8 de Julho) que regula a questão das touradas, e que admite as touradas de morte quando haja uma tradição arreigada por mais de 50 anos; ao Regulamento CE 1739/2005 da Comissão de 21 de Outubro de 2005, que define as condições para a circulação de animais de circo entre os Estados-membros; ao art. 1º a) e 3º f) da lei 92/95, que proíbem as lutas entre animais; ao art. 4/5 da Declaração Universal dos direitos dos animais; ao art. 9º da Convenção Europeia para protecção dos animais de companhia.
Efectivamente, os animais do circo são muitas vezes alvos de maus tratos. Os animais selvagens são obrigados a adoptar comportamentos que não se enquadram nas suas características psicológicas e fisiológicas, são mal alimentados e habitam em cativeiros com más condições e muitas vezes sofrem treino violento para conseguirem executar as tarefas. Há casos denunciados pelas associações de animais ( vide www.animal.org.pt e www.manifestoanimal.org ) de espancamentos, de ferimentos com barras de metal, com chicotes e com choques eléctricos. Os animais chegam mesmo a manifestar distúrbios comportamentais graves, nomeadamente a repetição sem sentido dos mesmos movimentos, a auto-mutilação e a coprofagia. Compreendemos que Martha Nussbaum entenda que a liberdade animal esteja no pólo oposto de tudo isto e que seja urgente uma tutela destes animais que são vítimas do homem. Não concordamos com a autora é na ultrapassagem da barreira da espécie. As espécies são diferentes e não pode haver uma extensão dos direitos humanos aos animais, pelo que entendemos que a tutela deve ser feita numa lógica objectiva e antopocêntrica.
Portanto, não deixando de ter em vista a dignidade animal, nomeadamente a dos animais do circo, entendo que a melhor forma de tutela jurídica dos animais não passa pela atribuição de direitos subjectivos aos mesmos, mas pelo reconhecimento de que existem deveres humanos em relação aos animais. A melhor forma de tutela dos animais e a mais coerente em termos de construção jurídica é a tutela objectiva.
Cláudia Isabel Ferraz Dias
Subturma 5
sábado, 21 de março de 2009
Comentário à frase de Martha Nussbaum: animais não humanos: objectos do Direito ou sujeitos de direitos?
Etiquetas
Cláudia Isabel Ferraz Dias,
Liliana Escada,
subturma 5