terça-feira, 24 de março de 2009

Comentário ao Acórdão do STJ de 19/10/04 - Tiro aos pombos

No caso vertente, colocava-se a questão da admissibilidade, face ao ordenamento jurídico, da prática de tiro a alvos vivos em voo, concretamente, a pombos.
Fazendo uma breve introdução, antes de passar ao comentário ao douto aresto em causa, deve referir-se que esta problemática se enquadra naquilo a que muitos autores vêm designando como "direitos dos animais", expressão concretizada por JORGE BACELAR GOUVEIA em duas vertentes: 1ª - enquanto área do Direito da Natureza que se ocupa da protecção dos animais contra ataques injustificados e dolorosos (concepção de que VASCO PEREIRA DA SILVA discorda, ao manifestar-se contra o «fundamentalismo ecológico»); 2ª - na perspectiva de deveres que impendem sobre as pessoas nas relações que estabelecem com o meio animal. No mesmo autor encontra-se a enunciação do princípio do não sofrimento desnecessário como princípio fundamental do "Direito dos animais".
A análise do referido Acórdão só pode causar manifesta perplexidade, pelas razões que doravante se passam a enunciar.
Desde logo, cumpre explicitar que a decisão, no sentido da licitude da prática de tiro a pombos (reiterada por pronúncia do mesmo Supremo Tribunal, datada de 15/03/07), contraria uma lista considerável de decisões de tribunais de 1ª Instância, que julgaram, com argumentos mais razoáveis, e deveras mais atendíveis, tal actividade ilícita.
A decisão alicerça-se sobretudo no entendimento de que a actividade em causa não provoca aos animais sofrimento cruel nem prolongado; de que se trata de uma "modalidade desportiva" (?) «legalmente justificada ou não desnecessária no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento equilibrado»; de que falamos de uma tradição cultural largamente enraizada e com século e meio de história, integrante do património do povo português. Ademais, expõe-se que tal procedimento ultrapassa uma pura dimensão lúdica, sendo justificado por interesses económicos, tendo também por escopo a criação de «riqueza individual e colectiva».
Salvo o devido respeito, qualquer destes argumentos improcede.
Os diplomas que aqui importa chamar à colação são a Lei 92/95 e a Declaração Universal dos Direitos do Animal, adoptada pela UNESCO.
Confrontando em primeiro lugar o aresto com a supra-mencionada Lei, é imperativo concluir pela ilegalidade da decisão proferida. Senão vejamos: logo no seu art. 1.º/1, este normativo proíbe as práticas que causem morte, sofrimento cruel e prolongado, ou graves lesões (conceitos que inclusivamente a jurisprudência se encarregou de densificar), e que o façam sem necessidade. Não se percebe como conseguiu o Colectivo concluir pela não verificação de qualquer das consequências enunciadas - morte, haverá sempre, imediata ou retardatária, em virtude dos ferimentos infligidos; o sofrimento é que poderá ser eventual. Não obstante, estará preenchida esta parte da previsão. Já quanto ao segundo elemento exigido para que a proibição funcione, a desnecessidade, parece também estar verificada. Como ponto de partida, temos de admitir que se trata de prática que reveste uma feição eminentemente lúdico-desportiva. Carece de fundamento não só a invocação da sua necessidade económica, uma vez que a subsistência de uma empresa que tenha por objecto tal actividade seria assegurada pelo recurso a alvos artificiais, como também a alegação da sua indispensabilidade em termos culturais. Tal prática não integra o acervo cultural do povo português, e não é necessária enquanto meio de realização pessoal de cada indivíduo; ainda que o fosse, tal realização pessoal que, in casu, se concretiza na aferição da perícia do atirador, seria exactamente conseguida da mesma maneira através do uso de alvos artificiais. Apesar de não parecer estar preenchida nenhuma das alíneas constantes do art. 1º/3, a integração na cláusula geral do nº1 é suficiente para tomar tal actividade como ilegal.
Também a Declaração Universal dos direitos dos animais condena a instrumentalização dos animais de modo a causar-lhes sofrimentos desnecessários, abominando a crueldade e o extermínio, e proclamando um dever de protecção relativamente a estes seres. Se entendermos que alguns dos princípios enunciados integram o Direito Internacional Comum, então teremos de concluir que eles se inserem na ordem jurídica interna por força da recepção automática (art. 8º/1 CRP), sendo dotados de vinculatividade, acrescendo à protecção que já resulta do diploma fundamental na matéria, a Lei 92/95.
Tão pouco parecem estar reunidos os requisitos de reiteração e de convicção de obrigatoriedade que permitiriam conceber esta prática como um costume contra-legem susceptível de derrogar a proibição do art. 1º/1.
Pelo exposto, terá de se concluir pela ilegalidade da decisão judicial, concluindo, como o fez a recorrente no recurso para o STJ, que o único escopo subjacente ao tiro aos pombos é o gozo pessoal dos atiradores, interesse que, mesmo na ausência de legislação na matéria, não parece digno de qualquer tutela, sobretudo no confronto com as perniciosas consequências que lhe inerem.