A decisão do TJUE ora em análise não pode senão causar espanto. Numa UE que se gaba das sua responsabilidade ambiental, da sua eco friendliness, e que plasma amplamente nos Tratados o princípio do desenvolvimento sustentável (cfr., por exemplo, o considerando 8 do preâmbulo e o ponto 1 do art. 2º do TUE), colocando inclusivamente a missão da sua prossecução no primeiro pilar (art. 2º do TCE), em que os poderes e formas de actuação da União são, como se sabe, bem mais enérgicos do que nos restantes, não pode senão concluir-se que alguém enlouqueceu no TJUE…
Mas vamos por partes. O que o Ac. Mellor vem dizer é que a decisão de dispensa de AIA não tem de conter ela própria as razões pelas quais a autoridade competente entendeu que essa avaliação não era necessária, bastando que essa fundamentação seja facultada ao interessado que a solicite. Em bom português, isso significa que ela não tem de ser fundamentada senão a pedido.
Mais, vem-se dizer que a dita decisão está suficientemente fundamentada desde que os fundamentos que contém, juntamente com os elementos que já foram dados a conhecer aos interessados, eventualmente completados com as informações suplementares necessárias que a Administração está obrigada a prestar a seu pedido, lhes permitam julgar da oportunidade de interpor recurso dessa decisão.
Ou seja, a fundamentação do acto de dispensa é eventual e, mesmo se prestada, pode ser bastante sumária, para dizer o mínimo, pois basta que permita aos interessados julgar da oportunidade da impugnação do mesmo.
É caso para perguntar onde ficam o princípio da prevenção, a responsabilidade política difusa, a democracia participativa e o princípio da transparência.
O dever de fundamentação surgiu historicamente como uma forma não só de proteger o particular contra arbitrariedades do poder (tutela subjectivista), como de garantir que as decisões da Administração são racionais, boas – em suma, que prosseguem da melhor forma possível o interesse público (tutela objectivista). Porque quem não tem de fundamentar também não tem de pensar...
Dizer que a fundamentação de um acto só tem de ser efectuada a pedido do particular equivale na prática a dizer que esta é eventual porque, se ninguém a pedir, ela não é obrigatória. Com isto, andámos para trás cerca de duzentos anos nas conquistas do Direito Administrativo…
E não se venha dizer que essa fundamentação tem já de estar feita e que o que é eventual é a sua apresentação, porque essa alternativa não parece nem muito coerente nem muito melhor. Não parece muito coerente porque o que esta decisão pretende tutelar é a celeridade a todo o custo, pelo que não teria grande vantagem que a fundamentação fosse feita na mesma e só apresentada quando solicitada. Aliás, se havia fundamentação porque não facultá-la ab initio aos particulares? Também não parece muito melhor porque traz de volta a figura das fundamentações secretas, da raison d’État e toda uma série de coisas que tresandam a regime anti-democrático.
A acção popular fica assim praticamente na gaveta porque, convenhamos, só um cidadão diligentíssimo se dirigirá sistematicamente junto da Administração para que esta fundamente as suas decisões de dispensa de AIA. As ONGAS e o «Homem de Lisboa» andam aí, é verdade, mas não parece que a tutela do ambiente possa ficar à mercê da boa vontade de uns quantos beneméritos. No fundo, haverá impugnações das decisões de AIA quando haja um interesse pessoal e directo de alguém que seja lesado, e o resto são «histórias da Carochinha»…
A protecção do ambiente é feita sobretudo de forma preventiva. Portanto, a dispensa de AIA tem de ser excepcional. Mas se o recurso à excepção não tem de ser fundamentado, ou se só tem de sê-lo eventualemnte, o risco de se transformar na regra é colossal. O que deste Acórdão transparece é, pois, uma actuação basicamente reactiva do particular, que deve decidir se quer ou não impugnar a decisão de dispensa de AIA. Voltámos também à pré-história do Direito do Ambiente.
Chegados a este ponto, pergunta-se «E agora?». Que fazer com esta decisão do TJUE?
Aqueles que postulem que o primado do Direito Comunitário se impõe mesmo sobre a Constituição têm entre mãos um problema bicudo, pois terão de decidir o que fazer com decisões do TJUE que violem os Tratados – um problema análogo ao das sentenças inconstitucionais do TC. Quem, pelo contrário, como nós, defenda que a Constituição é hierarquicamente superior ao direito derivado tem a tarefa bastante facilitada.
Parece-nos que esta jurisprudência viola, pelo menos, o direito à fundamentação dos actos administrativos (art. 268º, n.º 3 CRP) e o princípio da transparência, que perpassa do art. 267º, n.º 1, CRP e decorre necessariamente dos princípios da democracia participativa e do Estado de Direito (art. 2º CRP). Assim, o dever de fundamentação no âmbito do RJAIA deve continuar a ser feita como até aqui, uma vez que a interpretação conforme com o Ac. Mellor do art. 3º RJAIA seria inconstitucional.
Tudo visto, não parece que esta jurisprudência venha alterar grande coisa na nossa ordem jurídica. Mas cria um precedente inaceitável. Resta-nos portanto confiar na sensibilidade e bom senso das entidades licenciadoras, no sentido de não se fazerem valer da jurisprudência Mellor…