A tutela dos animais é hoje um tema bastante discutido, nomeadamente contra actuações humanas violadoras dos direitos dos animais. No entanto, e uma vez que os animais são coisas para o direito, não podemos considerar os animais titulares de direitos subjectivos, não obstante terem uma tutela específica. O Professor Menezes Cordeiro considera-os sujeitos de uma tutela sui generis, uma vez que não podem ser vistos como simples coisas e merecem uma existência digna. Nesta medida, os titulares do direito ao ambiente são as pessoas, e os animais constituem um bem jurídico ambiental que deve ser tutelado, como tarefa, pelo Estado.
Quanto ao Decreto – Lei nº 314/2003 (Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e outras Zoonoses e regras relativas à posse e detenção, comércio, exposições e entrada em território de animais susceptíveis à raiva) temos o exemplo de um regime jurídico que apesar de incidir sobre as espécies animais, tem como pano de fundo preocupações de saúde pública, nomeadamente protecção da espécie humana e manutenção da indemnidade do país relativamente a certas doenças susceptíveis de ser propagadas por animais.
É tarefa fundamental do Estado promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, incluindo-se nesta tarefa as medidas de sanidade e vacinação animal, apreensão de animais vadios e o combate às epidemias. Tendo por base, ainda, preocupações de saúde pública relacionadas com doenças propagadas por animais, compete às Câmaras Municipais a salvaguarda do ambiente e salubridade nos agregados populacionais (artigo 14º nº1 h) da Lei 159/99).
É neste contexto que se insere o citado regime jurídico, que se caracteriza por conter medidas de carácter preventivo e medidas de polícia sanitária. Apesar da existência de um regime que consagra a obrigatoriedade de registos e licenciamento (Decreto-Lei 91/01), os seus resultados deixam um pouco a desejar e apela-se à ideia de necessidade de um registo electrónico de caninos e felinos.
A regulamentação do Decreto-Lei 314/2003 é detalhada e abrangente, enunciando acções de profilaxia médica sanitária e acções de vigilância em várias áreas (em zonas habitacionais, em actividades lúdicas e comerciais, etc).
Agora, mais concretamente em relação ao problema referido no acórdão, faz sentido que a detenção de canídeos em zonas habitacionais esteja dependente de boas condições e ausência de riscos hígio-sanitários e, ainda, sujeita a um número limite de animais. Estas medidas visam não só qualidade de vida, tranquilidade e saúde das populações mas acabam também por indirectamente tutelar os próprios animais e evitar que sejam criados sem condições.
As entidades que verificam o cumprimento destes requisitos (explanados no artigo 3º nº 1 a 4) são as Câmaras Municipais, Delegado de Saúde e médico veterinário municipal (artigo 3º nº5), e o nº 6 do referido artigo disciplina que o presidente da Câmara Municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial, no caso de criação de obstáculos ou impedimentos à remoção de animais, para aceder ao local onde estes se encontram e proceder à sua remoção.
A decisão de remoção cabe nas atribuições municipais (artigo 14º nº1 h) da Lei 159/99) e visa a tranquilidade, qualidade de vida e saúde da vizinhança, ou seja, corresponde a um interesse público e não a um conflito entre sujeitos privados, embora esteja relacionado com as relações de vizinhança. Nas palavras do Professor Menezes Cordeiro, “ A necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado…”, e neste caso em análise, de facto, justifica-se que seja uma situação regulada pelo direito público, não só por ser da competência da Câmara Municipal mas principalmente por ter como objectivos tarefas que são da competência do Estado.
Podemos afirmar que estamos perante o exercício de poderes administrativos, sendo a decisão de remoção de canídeos um acto administrativo, com as características inerentes, e que produz efeitos sobre uma situação individual num caso concreto.
Dada a natureza administrativa do acto, coloca-se em causa a competência dos tribunais judiciais para a emissão do mandado, referido anteriormente, que permite o acesso e remoção dos animais, uma vez que para a sua emissão os tribunais judiciais teriam de avaliar da legalidade do acto que lhe serve de suporte, a decisão administrativa de remoção, cuja apreciação compete aos tribunais administrativos (artigos 66º do CPC, 18º nº1 da LOFTJ e 4º nº1 b) do ETAF).
Conclui-se que este comando, o artigo 3º nº6, é inconstitucional na vertente orgânica, por violar o artigo 165º1 p): as matérias no âmbito das relações jurídico-administrativas são da competência dos tribunais administrativos e os tribunais judiciais não podem decretar um mandado que permita a remoção das espécies animais que desrespeitem os requisitos e limites previstos quanto à detenção de animais em zonas habitacionais.
Ana Teresa Duarte Silva