A distinção axiológica entre os princípios da prevenção e da precaução aparenta ser de grande complexidade, mas, no fundo, é tudo uma questão de aprofundamento conceptual. O que é que isto significa? Bom, na realidade, prevenção e precaução são conceitos que se sobrepõem. No entanto, no âmbito da evolução da política ambiental internacional, “precaução” foi o vocábulo escolhido para traduzir um necessário reforço do papel dos Estados na intervenção ambiental premeditada.
Para que se perceba, exactamente, a raiz do problema, vejamos a evolução história da tutela jurídica ambiental na comunidade internacional. Como refere o professor Nicolas de Sadeller na sua obra “Environmental principles”, “as políticas públicas intencionadas a se opor a danos ambientais têm sofrido uma sucessão de modificações radicais ao longo do tempo”. Observou-se, numa primeira fase, à teoria da “remediação”, o que, como é óbvio, traduzia-se numa intervenção tardia pelas autoridades públicas em matéria ambiental. Perante tal falha, surgiu, numa segunda fase, a teoria da “prevenção”, essencialmente baseada numa intervenção prévia das autoridades perante a ocorrência de um dano que provavelmente aconteceria. Ora, com a evolução do pensamento jurídico ambiental, os especialistas acabaram por concluir que o papel de tutela ambiental estadual não se poderia ficar pela prevenção de prováveis danos ambientais. Tornou-se, assim, necessário adoptar uma nova atitude, caracterizada pela prevenção de riscos potenciais, em que as ameaças incertas ou hipotéticas, cuja futura materialização é insusceptível de comprovação científica, encontram uma resposta jurídica pelos Estados. Chega-se, então, a uma terceira fase, adoptando-se o conceito de “precaução” para designar uma nova concepção política da ordem internacional.
Ora, bem sabemos que o Direito é, essencialmente, construído com base em concepções políticas. O princípio da precaução resulta, tão só, de uma nova concepção política ambiental. Mas, no fundo, fruto da sua raiz, ele não é mais do que um aprofundamento do princípio da prevenção. Como afirma o professor Paulo Affonso Machado na sua obra “Direito Ambiental Brasileiro”, “o princípio da precaução consiste em dizer que não somente somos responsáveis sobre o que nós sabemos, o que nós deveríamos ter sabido, mas também, sobre o que nós deveríamos duvidar”. É, portanto, abandonar uma filosofia do provável, adoptando a teoria do possível.
Bom, até agora tudo parece simples. Então, afinal qual é o problema que tanto debate tem levantado na ordem jurídica? Simples, é que uma nova concepção política exige uma correspectiva concretização jurídica que possibilite a sua aplicação prática. Tem sido a falta de medidas uniformes e consentâneas na área da prevenção potencial que tem colocado a autonomia do princípio da precaução em check.
Compreendo o professor Vasco Pereira da Silva quando defende a construção de uma noção ampla do princípio da prevenção, em substituição de uma construção autónoma dos princípios da prevenção e da precaução. No entanto, a razão de ser da autonomização do princípio da precaução é comum a muitos outros princípios jurídicos. Assume-se a autonomização de um conceito quando se considera a existência de elementos especiais em relação ao seu conceito-base ou conceito de origem. Na minha opinião é o que se passa com o princípio da precaução. Em consequência da nova atitude internacional perante as políticas ambientais, considerou-se que o elemento especial do “combate ao risco potencial” seria suficiente para autonomizar o princípio da precaução.
Naquela que é a concretização deste mais recente princípio ambiental, já concordo com alguns dos argumentos do professor Vasco Pereira da Silva. A assunção do princípio da precaução como uma realidade não pode, de facto, levar à teorização de posições extremas que dêem origem a atitudes eco-fundamentalistas. Numa perspectiva material, na minha opinião só faz sentido falar-se na distinção dos princípios da prevenção e da precaução em razão do carácter actual ou potencial dos riscos. A distinção baseada na decorrência de causas naturais ou humanas é, de facto, absurda. Como bem afirma o professor Vasco da Silva nas suas “Lições de Direito do Ambiente”, “ nas sociedades (pós-)industrializadas dos nossos dias, as lesões ambientais são resultado de um concurso de causas em que é impossível distinguir rigorosamente factos naturais de comportamentos humanos”. Mas mais do que isso; uma distinção fundamentada nestes argumentos não tem qualquer sentido teleológico. Isto é, a autonomização do princípio da precaução não surgiu com essa finalidade. Se assim tivesse acontecido tratava-se de um absurdo desdobramento de conceitos, sem qualquer utilidade prática.
Bom, visto isto importa analisar as concretizações práticas daquela que é a distinção material entre os princípios da prevenção e da precaução fundamentada no carácter actual ou potencial dos riscos. Em concreto, o princípio da precaução é, normalmente, associado a uma nova dimensão dos deveres de cuidado e diligência na prevenção de danos, passando os mesmos a estenderem-se aos riscos meramente possíveis. Como defende Ana Gouveia Martins na sua tese intitulada “Aproximação ao conceito e fundamento do Princípio da Precaução”, o regime legal do impacte ambiental, bem como o regime de responsabilidade civil em matéria ambiental, devem sofrer a incidência do princípio da precaução. Assim, segundo esta autora, só pode ser considerado como tendo adoptado uma conduta diligente aquele que, “tendo conhecimento da possibilidade de um dano, procurou informar-se, recolhendo os dados disponíveis sobre o assunto e tomou as medidas adequadas para o impedir ou minimizar”. Também, segundo Ana Gouveia Martins, “o dever de prestação de informações deve sujeitar-se à influência deste princípio, deixando de respeitar apenas aos perigos e riscos conhecidos e alargando-se aos riscos potenciais”.
Ora, a posição de Ana Gouveia Martins é nitidamente extrema na concretização do princípio da precaução ambiental. Concordo com o professor Vasco Pereira da Silva quando defende a inoperacionalidade de uma visão extrema do princípio “in dúbio pró natura” no procedimento administrativo. De facto, também considero uma “carga excessiva, inibidora de qualquer nova realidade, seja em que domínio for”, devido à inexistência de um “risco zero” na matéria ambiental. Mas, atenção, no domínio da responsabilidade ambiental, quando há alguém a quem possa ser imputada uma determinada actividade ilícita e que esteja em condições de ter provocado tais danos, já faz sentido que o Direito do Ambiente estabeleça uma presunção de causalidade ou, que, pelo menos, introduza alguma flexibilidade nos critérios de determinação do nexo causal. E ao admitir-se esta solução, como faz o professor Vasco Pereira da Silva, estar-se-á a dar, efectivamente, um conteúdo válido ao princípio da precaução, enquanto realidade autónoma.
Em síntese, o reconhecimento do princípio da precaução enquanto realidade autónoma depende de um entendimento equilibrado daquele que é o significado e daquela que é a origem deste princípio. Parece-me indubitável que o princípio da precaução assume uma relação de especialidade para com o princípio da prevenção, justificando-se a sua autonomização por força do seu cariz político e da sua susceptibilidade de aplicação prática, entendido numa perspectiva mitigada.