segunda-feira, 23 de março de 2009

Não vale a pena tentar distinguir...

Entre as tarefas fundamentais do Estado encontra-se no artigo 9º, alínea e) da CRP a de “proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território”.
Para assegurar o seu cumprimento, a Constituição estabelece um conjunto de princípios fundamentais em matéria de Direito do Ambiente, entre os quais o princípio da prevenção, dotado de grande relevância e especificidade.
Nos últimos tempos tem-se verificado uma tendência para tentar autonomizar um princípio da precaução em relação ao princípio da prevenção, que ainda não conseguiu uma formulação consensual.
Há quem defenda que o princípio da precaução transcende a passagem do modelo clássico “reaja e corrija” para o modelo “preveja e previna” inaugurada pelo princípio da prevenção em sentido estrito. Desde já se afirma, que prevalecer e precaver são sinónimos, não existindo razões sólidas para duplicarmos os termos. O que se consegue é acabar por caracterizá-lo recorrendo à noção de prevenção.
Numa tentativa de autonomizar os conceitos, afirma-se que a precaução parte sempre de uma orientação preventiva mas, em contrapartida, a prevenção pode não se traduzir em precaução. Dir-se-ia que “o princípio da precaução tem um sentido preventivo. No entanto, estaremos fora do âmbito do princípio se as medidas tomadas o forem perante um risco potencial certo ou comprovado”. Mais ainda, que o princípio da precaução, incentiva, por um lado, à antecipação da acção preventiva e por outro lado à proibição de actuações potencialmente lesivas, mesmo que não existam certezas. Não faz sentido restringir o conceito de prevenção para tentar autonomizar o princípio da precaução, como sentido mais amplo deste.
O princípio da prevenção tem como finalidade evitar lesões do meio ambiente através da tomada de medidas, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas, de natureza humana ou natural, e não reagir contra elas. Este tanto se destina num sentido restrito, a evitar perigos imediatos e concretos, como num sentido amplo, a afastar eventuais riscos futuros, mesmo que ainda não inteiramente determináveis.
De entre os que defendem a autonomização, há quem afirme a distinção entre os conceitos de risco e perigo. O princípio da precaução circunscrever-se-ia às situações de verdadeiro risco demonstrado ou hipotético e o princípio da prevenção às situações de verdadeiro perigo. Para eles, o perigo pressuporia o conhecimento com base num juízo de prognose ou nos dados da experiência, de que uma determinada acção causa provavelmente um dano a um bem jurídico. Constituiria uma ameaça concreta à existência ou segurança de uma pessoa ou de uma coisa, assente numa probabilidade relevante de ocorrência. O risco seria um perigo eventual, mais ou menos previsível, no qual não existe ou não é conhecida uma probabilidade significativa de ocorrência da lesão. Quanto a este, poderia ser potencial (hipotético) ou demonstrado, ou um risco potencial. O risco seria demonstrado quando, não obstante a sua concretização ser incerta, fosse conhecida a probabilidade da sua ocorrência ou magnitude. Assim, ele não seria ainda um verdadeiro perigo mas um risco. Exemplos disso seriam os riscos de acidentes de carros ou decorrentes da existência de instalações nucleares. O risco potencial constituiria “um risco do risco”, podendo eventualmente nunca chegar a confirmar-se. Exemplo seria o caso dos riscos associados aos organismos geneticamente modificados.
Dentro desta distinção, os perigos seriam decorrentes de causas naturais e os riscos seriam provocados por acções humanas. Exemplo disto seria uma das definições do princípio de prevenção apresentada que se traduz na “iminência de uma actuação humana, a qual comprovadamente lesará de forma grave e irreversível bens ambientais, essa intervenção deve ser travada”. Ora como o Professor Vasco Pereira da Silva diz e bem, as lesões ambientais são o resultado de um concurso de causas em que é difícil distinguir rigorosamente factos naturais de comportamentos humanos. Um exemplo será o da chuvas ácidas em que um fenómeno natural como a chuva pode ser gravemente lesivo se conjugado com a forte poluição da atmosfera, obra humana.
“Perante a ameaça de danos sérios ao ambiente, ainda que não existam provas cientificas que estabeleçam um nexo causal entre uma actividade e os seus efeitos, devem ser tomadas as medidas necessárias para impedir a sua ocorrência.” Este é um dos critérios de aplicação defendidos do princípio da precaução Está aqui presente a ideia de que se deve adoptar uma atitude de antecipação preventiva, em que o grau de prova exigível para uma determinada actuação é reduzido. Enquanto a incerteza se mantiver, o princípio da “prioridade da prognose negativa deve prevalecer sobre a positiva” e sendo assim, a decisão é tomada num sentido in dubio pro ambiente. Isto quer dizer que se iria proibir uma actividade cujo efeito ambiental é desconhecido e legitimar uma medida destinada a evitar uma lesão da qual se têm dúvidas significativas sobre a sua ocorrência. Tal corolário levaria a que na dúvida, perante tal desconfiança ela seja considerada desde logo “culpada” de lesão ambiental. Penso, como alguns autores, que uma tal atitude totalmente “precaucionista” seria elevar o ambiente acima de outros valores e sem olhar a custos, o que não será de aceitar.
No domínio da responsabilidade ambiental, dada a dificuldade em determinar rigorosamente as relações de causa-efeito entre acto ilícito e dano, mas havendo alguém a quem possa ser imputado por reunir condições para o provocar, poderá ser estabelecida uma presunção de causalidade ou introduzir uma flexibilidade nos critérios de determinação do nexo causal. Isto representa uma concretização do princípio da prevenção em sentido amplo.
O princípio da precaução é por vezes assimilado a uma exigência de risco zero o que em matéria ambiental não existe. Como afirma Edgar Morin, vive-se numa época em que se “pretende eliminar a existência da ideia de risco. Cada um esquece que a sua própria vida é uma aventura, o acidente que não se sabe mais enfrentar torna-se um evento incompreensível que exige sistematicamente uma compensação”. O princípio não pode postular a erradicação de todo e qualquer risco.
Outro corolário associado à autonomização do princípio da precaução é o da “inversão do ónus da prova”, cabendo àquele que pretende exercer uma dada actividade ou desenvolver uma nova técnica demonstrar que os riscos a ela associados são aceitáveis. Ou seja, cabe aos potenciais agressores demonstrar que uma acção não apresenta riscos sérios ou graves para o ambiente, uma vez que são eles que pretendem alterar o status quo ambiental. As questões que aqui se levantam dizem respeito à sua necessária verificação sempre que exista um risco ambiental ou se ela depende da sua gravidade e irreversibilidade, e ainda se é necessário demonstrar a inocuidade em relação ao ambiente ou se basta a mera plausibilidade de não ocorrência de efeitos ambientais adversos.
O princípio da prevenção é reconhecido ao nível internacional, comunitário e nacional como um imperativo de actuação indispensável no domínio do ambiente, que visa evitar a ocorrência de danos ambientais.
Este princípio tem assim consagração expressa no número 2.º, do artigo 66.º, alínea a) da CRP que diz:
- “prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”.
O mesmo não acontece com o princípio da precaução, embora esteja, por exemplo, presente na Lei da Água, Lei nº 58/2005 de 29 de Dezembro. Este encontra acolhimento expresso no artigo 174.º, do TCE, ao qual, como diz a Doutora Carla Amado Gomes, não há uma adstrição directa do Estado português. Isto porque a vaguidade e falta de precisão do princípio da precaução, exigindo uma actividade de densificação e concretização pelas instituições comunitárias no âmbito de poderes discricionários, obstam à atribuição de efeito directo ao artigo do Tratado.
Em conclusão, penso que será mais preferível, em vez de proceder a uma autonomização de um direito de precaução, aceitar uma noção ampla do princípio da prevenção de modo a incluir nele tanto perigos naturais como riscos humanos e bem como de perigos imediatos e concretos e de eventuais riscos futuros.
Marlene Fonseca
nº 15238
subturma 10