domingo, 22 de março de 2009

Prevenção e Precaução: justifica-se a sua autonomização?

A frase em análise do Professor Vasco Pereira da Silva incide sobre a questão nuclear de saber se o princípio da precaução, como nova realidade a integrar o domínio ambiental, se deve considerar, face ao princípio da prevenção, como princípio jurídico autónomo ou, pelo contrário, se deve entender como integrado no princípio da prevenção.

O princípio da prevenção, segundo a definição avançada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, “tem como finalidade evitar lesões do meio-ambiente, o que implica capacidade de antecipação de situações potencialmente perigosas, de origem natural ou humana, capazes de pôr em risco os componentes ambientais, de modo a permitir a adopção dos meios mais adequados para afastar a sua verificação ou, pelo menos, minorar as suas consequências”.

Este princípio encontra-se consagrado em diversas fontes. A título meramente exemplificativo indicaremos: de Direito Internacional, a Carta Mundial da Natureza (aprovada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, em 29 de Outubro de 1982) e a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento de 1992, cujo princípio 16 consagra a necessidade de uma “abordagem preventiva” aos problemas do ambiente. De Direito Comunitário, após a entrada em vigor do Acto Único Europeu realça-se o art.º 174 que consagrou entre outros princípios, o princípio da acção preventiva e ainda a directiva n.º 85/337/CE, de 27 de Junho de 1985, sobre a necessidade de proceder a uma avaliação de impacto ambiental antes de autorizar a implementação de certos projectos nos territórios dos Estados-membros. De Direito Interno a ideia de prevenção encontra-se subjacente a quase todas as disposições da Constituição do Ambiente e tem consagração expressa no artigo 66.º/2/a da Constituição que aponta para uma orientação preventiva, quando refere a necessidade de “prevenir e controlar a poluição…”. A lei de Bases do Ambiente consagra também expressamente o principio no art.º 3.º, a).

O princípio da precaução, para quem defenda que é um princípio autónomo, significa segundo Gomes Canotilho que “o ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida quando haja incerteza, por falta de provas científicas evidentes, sobre o nexo causal entre uma actividade e um determinado fenómeno de poluição ou degradação do ambiente”. Este princípio na sua essência não seria fruto de reflexões científicas, mas sim de preocupações práticas e prementes relativas ao aumento da poluição pois o homem deveria antecipar, apesar da incerteza científica, os danos que de forma grave e irreversível poderiam lesar os bens ambientais, estes danos deveriam ser evitados.

Quanto às fontes que consagram este princípio a nível internacional destacamos a Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte, em 1987, sobre poluição marítima. Em 1990, foi adoptado na Declaração da Conferência governamental de Bergen sobre o Desenvolvimento Sustentado. Em 1992 aparece também na Declaração do Rio no princípio 15, no artigo 3 da Convenção-quadro da ONU sobre as alterações climáticas, e no parágrafo 22.5 da agenda 21. A nível comunitário este princípio vem referido no art.º 174 do TCE.

Quanto à sua independência, a nível internacional, o princípio da precaução não está ainda bem definido. Alguns incluem-no nos princípios gerais de Direito Internacional, outros incluem-no nas regras de Direito Internacional geral ou comum. Por outro lado há autores que negam o estatuto de princípio jurídico, devido à sua grande indefinição.

No que toca à sua consagração constitucional, Ana Gouveia Martins parte do mesmo preceito constitucional do princípio da prevenção, ou seja, o art.º66.º/2/a da Constituição. Segundo a mesma autora “não se deve distinguir onde o legislador não distingue, a referência à prevenção seja interpretada como postulando a prevenção e controlo de efeitos conhecidos como efeitos potenciais”. Não concordamos com este entendimento, no limite puder-se-ia defender o eventual efeito directo do n.º 2 do art.º 174 do TCE.

Quais são as consequências da aplicação deste principio, ou melhor, deste suposto principio autónomo?

1 - Perante a ameaça de danos consideráveis e irreversíveis no meio ambiente, ainda que não existam provas cientificas, que atestem o nexo causal entre uma actividade e os seus efeitos, devem ser tomadas as medidas necessárias para impedir a sua ocorrência.

Assim sendo, quando falamos de prevenção estamos no domínio da probabilidade, pressupõe a previsibilidade do perigo. No que toca à precaução estamos no domínio da possibilidade, visa antecipar o surgimento de um perigo, a fim de o evitar. A diferença estará em enfrentar perigos existentes ou adoptar medidas que se antecipem ao perigo hipotético, que previnam um risco. A diferença resulta como refere Carla Amado Gomes “da ténue linha traçada entre o terminus da previsibilidade de um perigo e o inicio da consideração de um risco”.

O princípio da precaução assim entendido na sua versão maximalista, ou nas palavras de Vasco Pereira da Silva num desvio eco-fundamentalista levaria a um resultado absurdo e irrealista face à actual sociedade do risco em que vivemos, pois toda e qualquer actividade que pudesse lesar o ambiente com um grau de possibilidade mínimo teria de ser evitada, salvo quando se tivesse a certeza absoluta sobre a sua inocuidade. A se aceitar a autonomização deste princípio sem dúvida que deveria sempre haver uma séria ponderação de interesses, pois caso contrário poderia levar à paralisação de tudo o que fosse novidade.

2- Inversão do ónus da prova, cabendo àquele que pretenda desenvolver uma determinada actividade cuja lesividade não está cientificamente comprovada, demonstrar que os riscos a ela associados são aceitáveis.

Como bem realça Vasco Pereira da Silva é impossível a prova do risco zero em matéria ambiental e que tal exigência representa um factor inibidor de qualquer fenómeno de mudança, susceptível de se virar mesmo contra a própria tutela ambiental.

Compreende-se as motivações desta inversão, visto que, normalmente é quem dispõe de mais meios, que fica isento de produzir a prova, o que condena à partida grande número de processos, derivado da carência económica das partes que são obrigadas a provar os riscos da lesão. Mas atenção para quem defenda tal inversão do ónus, esta nunca poderá levar a uma verdadeira diabolica probatio, o que aconteceria se fosse exigido a total inocuidade da actividade eventualmente poluente.

3- In dubio pro natura

Face a uma situação em que os prognósticos a longo prazo não forem claros acerca do risco zero de determinada actividade, deve ser dada prevalência ao princípio da prognose negativa sobre a prognose positiva. Assim sendo, mesmo que a curto prazo haja uma perspectiva positiva, havendo incerteza a longo prazo a decisão deve ser tomada in dubio pro ambiente.

O Professor Vasco Pereira da Silva aceita apenas o chamado princípio in dubio pro natura como um princípio de consideração da dimensão ambiental dos fenómenos, mas já não aceita se pretendermos que se trata de uma verdadeira presunção, pois levaria a uma inibição de qualquer nova realidade.

4 – Outra distinção derivada da autonomização da precaução seria distinguir em razão dos perigos decorrerem de causas naturais (prevenção) ou serem provocados por acções humanas (precaução). Esta distinção é falível, visto que na maioria dos casos dá-se um concurso de causas.

Cumpre tomar posição face à autonomização deste princípio. Consideramos, que não deverá ser um princípio autonomizável, pelo menos não nos termos em que o caracterizámos anteriormente.

Quais os motivos que nos levam a esta conclusão? Para além dos já anteriormente referidos, acentuamos ainda os seguintes factores das seguintes ordens (baseamo-nos na divisão feita pela professora Carla Amado Gomes em “Dar o duvidoso pelo incerto – Reflexões sobre o principio da precaução”):

- Linguística, consideramos que, como refere Vasco Pereira da Silva, não existe uma verdadeira distinção linguística entre prevenção e precaução, e que a distinção apenas operaria através de uma construção jurídica.

- Sociológica, com a perda de apoio na ciência, certas decisões perdem também parte do seu suporte. Será certamente difícil a justificação face a uma população, que iria ser beneficiada com um determinado projecto, que o mesmo não prossegue em situações limite derivado de uma decisão pró ambiente.

- Politica, os Estados em face de certas incertezas acerca da possibilidade remota de um determinado dano, veriam fortemente reduzidos os seus direitos soberanos de disposição e utilização dos recursos naturais.

- Económica, se o princípio fosse aplicado de uma forma eco-fundamentalista sem considerações de proporcionalidade, levaria à paralisação do crescimento industrial, pecuniário, agrícola, e isto, sem fundamentos científicos credíveis.

- Jurídica, como seria possível uma jurisprudência uniforme, se o que estará em causa não serão normas ou factos, mas sim opiniões científicas sobre factos e as suas consequências?

- Tecnológica, a proibição de introdução de novas técnicas e produtos devido à incerteza sobre os seus efeitos pode levar a uma estagnação do progresso científico. Assim perpetuar-se-ia antigas soluções de forma a evitar os novos riscos.

Face a toda esta problemática uma boa solução parece ser face às exigências de desenvolvimento a introdução do conceito do uso das melhores técnicas disponíveis (BAT, Best available technology) que não impliquem um custo excessivo (BATNEEC, Best available technology not entailing excessive costs). Esta seria um meio, como refere Ana Gouveia Martins (em “Aproximação ao conceito e fundamento do princípio da precaução”), alternativo de implementação do princípio da precaução, ao determinar a redução da poluição, independentemente da demonstração de efeitos danosos, simplesmente na base de que tal é tecnológica e economicamente possível.

Como se deverá interpretar este princípio face ao principio da prevenção, partindo do pressuposto de que não é autónomo? Seguimos a posição do Professor Vasco Pereira da Silva que adopta um conteúdo amplo para o princípio da prevenção, “ de modo a incluir nele a consideração tanto de perigos naturais como de riscos humanos, tanto a antecipação de lesões ambientais de carácter actual como de futuro, sempre de acordo com critérios de razoabilidade e de bom-senso”. Assim sendo para este Professor o princípio da prevenção em sentido restrito destina-se a evitar perigos imediatos e concretos, de acordo com uma lógica imediatista e actualista, por sua vez em sentido amplo destina-se a afastar eventuais riscos futuros, mesmo que não ainda inteiramente determináveis, de acordo com uma lógica mediatista e prospectiva, de antecipação de acontecimentos futuros.

Uma outra posição avançada pela doutrina será a da professora Carla Amado Gomes que entende que o “princípio da precaução deverá ser entendido como decorrente de uma interpretação qualificada do princípio da prevenção (a interpretação mais amiga do ambiente, nas palavras de Gomes Canotilho), ou seja a uma ponderação agravada do interesse ambiental em face de outros interesses”.

Em suma a autonomização do princípio da precaução não procede, visto que as consequências do mesmo numa visão maximalista levariam a uma protecção desproporcionada do ambiente face à real sociedade do risco em que nos inserimos.